abril 17, 2005

Foi uma vez...

Esta farsa chega a seu fim. Não por falta do que inventar, mas pelo excesso. Expansivos que somos, queremos sempre mais. De agora em diante, estaremos ambos a postos.

O Márcio Guilherme volta a ser Márcio Guilherme; eu passo a ser apenas um Farsante. Ao nosso lado, o Alto Volta, uma espécie de Elio Gaspari do bem, e o Naïf Gendarme, de um cara que tem vinte anos por erro na ordenação cósmica.

A nos unir, três coisas em uma só: o portal A Postos — ou Apostos —, nosso manifesto bloguístico, o Blogma 2005, e o blog coletivo Todos A Postos.

Quem em link pra cá e quiser continuar conectado já pode atualizar o endereço. Ficamos gratos, ainda que por lá as coisas estejam em versão beta.

abril 16, 2005

Superioridade tem limite

Existem muitos tipos de blogueiros à procura de distinção aristocrática. Uns fazem disso seu tema; outros, seu estilo. Mas ninguém chega perto do Márcio Guilherme, que nem mesmo escreve.

abril 14, 2005

Quem tudo quer tudo quer

Li, num sonho à Borges — ah, beber antes de dormir... —, este adesivo colado no vidro de um carro laranja: “A velocidade da tua força é o sucesso da minha inveja.”

Como faz sentido, fica demonstrada a estupidez da frase original. Aliás, difícil decidir o que é pior: se esses substantivos abstratos arrumados numa ordem coerente qualquer, ou se as parábolas de significado idêntico: “Um passarinho, quando voa, sabe a asa que tem.”

Continuo gostando apenas do que não tem lógica, e nisso minha vó é insuperável: “Bate com a mão na cabeça antes que o pé não chegue.” Eu sempre entendi a reprimenda: sentido é apenas a metade de tudo.

abril 10, 2005

Disfemismo

Com as denúncias da quebra do celibato e de homossexualismo entre padres mundo afora, é realmente mau gosto chamar os candidatos a Papa de papáveis.

abril 08, 2005

Palavras, palavras, palavras

Aqui no Rio, criaram um movimento contra a violência chamado “Basta!” — logo parodiado como “Bosta!” (obviamente muito melhor) —, cujo objetivo é dar um “grito contra o atual estado de coisas”. Exige muita capacidade bolar uma idéia assim: uma palavra, um verbo tornado interjeição e... pronto. Depois, o grupo percebeu que as faixas estendidas nas varandas mais valorizadas da cidade não chegaram a desanimar os bandidos. Resolveu fazer alguma coisa concreta — só não me perguntem o quê, porque, a essa altura, eu já estava mais entretido com o obituário e os quadrinhos.

Mudando de rumo e buscando “soluções reais e factíveis”, o grupo perdeu sua maior virtude: ser o primeiro movimento inteiramente abstrato, teórico, sintetizado no minimalismo de uma palavra e um ponto de exclamação. Até mesmo o design seguia essa perspectiva: letras em vermelho sobre fundo branco. Apenas isso... e Basta! Que pena. Tivessem me consultado e eu daria uma opinião decisiva: sejam originais e não façam nada. Protesto verbal é o que há. E faz muito sucesso.

Vejam o caso dos colunistas que escrevem nos grandes jornais. Ainda esta semana, li um artigo a respeito do Papa e da Igreja Católica. Levo as mãos ao rosto em sinal de constrangimento e quase não me atrevo a contar o que li, mas... vá lá, façamos o sacrifício: num arroubo crítico contra as instituições, o cara me escreve “igreja católica” assim, com letra minúscula. Ainda dei uma chance a ele, imaginando que fosse erro de digitação, mas o protesto se repetiu quatro vezes. Isso é que é indignação! Como ninguém tinha pensado em algo tão genial antes?!

Fico tentando imaginar o que vai na cabeça de pessoas assim. Deve ser alguma coisa parecida com o que pensam os criadores do Basta!. Se ainda assumissem o discurso vazio, sem fundamento e sem ação, contribuiriam mais com a causa do que qualquer ong (assim, com minúscula mesmo) jamais fez.

O problema, penso, é a falta de leitura. Basta uma horinha em frente ao Bartleby, de Herman Melville, para verificar o que pode a inércia humana. Se bem que o “Prefiro não fazer” (“I would prefer not to”, no original) do escrivão não combina com pontos de exclamação, mas isso é pedir demais dessa gente. Prefiro não fazer.

abril 01, 2005

Suspensão das aulas

Umas centenas ou milhares de brasileiros estão rezando para que João Paulo agüente firme até segunda-feira. A fé é capaz de cada coisa...

março 26, 2005

Traz um chopp e some!

O Naun tem razão: uma das piores pragas em voga é a síndrome dos garçons universitários. Contratados por bares e restaurantes da moda, eles transmitem uma mensagem curiosa sobre estes tempos, embora eu não saiba qual é. Pensei em dizer que eles estão ali para dar status ao lugar, mas isso seria piada: universitário brasileiro dando status a alguma coisa.

A qualidade do trabalho de um garçom é quase inversamente proporcional ao seu nível de escolaridade, e não há preconceito nisso. Vou ao bar e quero uma figura invisível, que me sirva chopp, de preferência sem que eu peça. Que idéia idiota achar que o cliente quer um amigo que o sirva: “Oi, meu nome é Fabrício (acho que todos se chamam Fabrício) e eu vou estar atendendo vocês”, diz, sentando-se à mesa. “Oi, Fabrício, levanta já!”

Pensando bem, até onde a experiência permitiu verificar, esses garçons universitários estão no emprego certo. São lugares em que não se encontram chopp, filé e fritas, mas apenas chopp perfumado com rosas, filé sobre leito de folhas verdes e “nossas incríveis fries com delicioso molho de queijo e pedaços de alguma coisa”. Com tanta enrolação, merecem atendentes enroladores. Nisso devem ser bons: afinal de contas, estão na universidade.

O pior talvez seja a ironia — e a pior ironia é a do idiota, que acha estar sendo irônico, quando está apenas sendo babaca —, o pior é o sorrisinho irônico diante de um prato pedido para dividir: “Olha, nossos pratos são individuais”, diz o Fabrício, com leve sotaque paulista (Fabrícios vêm de São Paulo, eu acho). O Naun sugere a resposta: “Eu sei, Fabrício, mas vou pedir para dividir porque, ao contrário de você, que é milionário e trabalha de garçom aqui, eu quero economizar e me poupar de comer um prato inteiro dessa comidinha fresca de merda.” Podem testar; funciona.

março 25, 2005

Quer comer limpo, vá comer em casa!

Desde pequeno, sempre gostei de competições. Chegava a jogar Banco Imobiliário contra mim mesmo, roubando para o azul, é claro. Em 1982, ainda moleque, acompanhei cada lance das eleições estaduais, atualizando os resultados para a família. Torcia para o Brizola, o que dava mais emoção à coisa toda.

Esse espírito competitivo acabou me atrapalhando algumas vezes. Não estudei piano, porque percebi que não conseguiria sequer começar a me comparar a qualquer um. Também desisti — sofrendo — da Ana Cláudia, a menina mais bonita do colégio.

Mas o tempo passou, e as coisas mudaram. Não que eu tenha deixado a competição de lado. Nada disso. Apenas mudei de foco.

Hoje, o que me empolga mesmo são as colunas de reclamações de leitores de jornal. Ah, nada como uma briguinha de comadres impressa em páginas “oficiais”. Gosto, especialmente, de quando reclamam de restaurantes. “O filé veio quase cru!” “Aquela barata passou perto da mesa e o gerente disse ela tinha vindo da rua.” “Um absurdo combrarem tanto por uma entrada tão pequena.” Pelo teor da coisa, já se vê quem fala.

E como, apesar de tudo, sou brasileiro, torço sempre pela parte mais fraca. Por isso, vibro cada vez que um maître dá um fora bem dado num cliente reclamão. Com tanta coragem e firmeza, o restaurante há-de ser bom.

março 19, 2005

A prisão da Gramática

Durante muito tempo, cultivei o desejo de escrever um post que começasse por um pronome oblíquo átono, mas não conseguia. Pensava que deveria tentar, exigir de mim a força necessária para fazê-lo. Cheguei até a completar um texto, mas não conseguia publicá-lo. Por certo tempo, deixei-o ali nos drafts, imaginando que sua hora chegaria. E chegou: hoje eu o apaguei para sempre.

Próclise em início de período é o cacete. Não escrevo, e pronto. Razões não faltam.

A primeira delas é a companhia. Diga-me aí, você que manja de literatura, o que é melhor: ficar ao lado de Machado e Graciliano ou de Mário de Andrade e os moderninhos? Elegância é só uma parte da coisa, mas é a melhor parte.

A segunda é o background teórico. Você já viu um lingüista? É um tipo triste, muito triste, que se obriga a ser natural e alegre, que vibra com os dentes trincados quando encontra uma concordância desviante. Essa história de amor ao desvio, não sei, não, mas me parece coisa de idiota.

A terceira razão é o fundamento das duas primeiras: gosto de prisões e tradições. Eu nada seria sem os meus limites; minha busca interior tem sido no sentido de encontrá-los, criar orgulho de todos, dar carinho a cada impossibilidade.

Por isso, cada vez que leio o LLL e sua série sobre as prisões, fico pensando que este blog deveria se chamar “Conservador, Conservante, Conservado”, o que, além de tudo, daria uma bela sigla.

março 18, 2005

Farsante

Eis a inspiração de tudo:


março 13, 2005

Contos Sensoriais (II)

Havia um retrato na parede do quarto de Isabel. Era o retrato de uma velha — ela me contou —, uma fotografia esquecida pelo antigo morador da casa que acabara de alugar. Era o retrato de uma velha, uma imagem envelhecida também. No olhar da velha, sua velhice inteira, disse-me Isabel. Não que houvesse ali sabedoria ou experiência, “essas coisas que queremos ver nos velhos, porque queremos ver em nós mesmos”. Não, em seu olhar havia apenas velhice: nenhuma transparência, opacidade pura. Isso tudo me contou Isabel, porque eu já não podia ver.

E me contou também que aquela velha era um pouco ela própria. Como? — perguntei-lhe. Isabel ficou em silêncio. Insisti em tom mais alto, imaginando que ela não tivesse me ouvido. Novo silêncio. Isabel olhava-me fixamente. Isso eu não podia ver, mas sabia. Isabel tinha os olhos marejados. Isso eu não podia ver, mas sentia em minhas mãos, entendendo que me restava também o silêncio.

O retrato da velha na parede nos contemplava vazio. Isabel não chegou a chorar, porque não queria que as lágrimas limpassem seu olhar do silêncio mais fundo. Isabel queria o vazio também, um vazio que a aproximasse da velha na parede; um vazio que a aproximasse de mim.

março 07, 2005

O que Lobão e Ed Motta (não) têm em comum

Bem no comecinho de Manhattan, há aquela cena inesquecível em que os personagens de Diane Keaton e Michael Murphy conversam sobre artistas “overestimated”, sob o protesto frenético do Isaac de Woody Allen. Quando chegam a Bergman, ele quase tem um infarto.

A cena é engraçada e me veio à cabeça a propósito de duas entrevistas ouvidas recentemente. Uma com Ed Motta; outra com Lobão. Quem os ouve falar — e tem a sorte de não ouvi-los cantar — deve ter a impressão de que se trata de gênios da música, talentos cuja qualidade justifica qualquer arrogância. Um fala de suas incursões pelo jazz; outro, de seu “diálogo” com a MPB. Eles devem estar de sacanagem. É um descompasso tão grande entre auto-imagem e obra, que a piada se torna peça de mau gosto. Levar-se a sério tem dessas coisas.

março 05, 2005

Sobre a minha miopia neurótica descoberta há pouco, por sugestão de um amigo mais esperto

Hoje eu ia contar a história do Gilmar, um cara que só se preocupa com miudezas. Em casa, ele traça algoritmos mentais para tudo. Acorda e, antes de se levantar, imagina a ordem das tarefas que tem a fazer: humm, colocar o pão na torradeira, beber um copo d'água, levar essas meias do quarto para a área, escovar os dentes, checar o email. Coloca tudo na seqüência mais econômica e vai fazendo: pega a meia com a mão esquerda, passa no escritório, liga o computador, passa pela cozinha, coloca o pão na torradeira com a mão direita, deixa as meias na área, liga o filtro, vai ao banheiro escovar os dentes, conecta a internet, pega as torradas e o copo d'água... Tudo isso enquanto planeja próxima seqüência do dia. Gilmar é avesso às grandezas e só enxerga coisas mínimas. O processo, a estratégia, o longo prazo ficam lá, bem fora do alcance da vista.

Gilmar só se preocupa com miudezas e eu ia contar a sua história hoje, mas desisti. Tolstoi aconselhou falar da aldeia, é verdade, mas do umbigo já é demais. Além disso, preciso ligar o gás, pegar a toalha, colocar a comida no microondas, levar o telefone para o quarto, fechar a cortina...

março 04, 2005

Recursos humanos, demasiado humanos

Se Nelson Rodrigues estivesse na ativa, trocaria a figura do contínuo por sua correspondente contemporânea — a gerente de RH. Para quem nunca identificou uma dessas infelizes, uma dica do farsante ausente: é aquela que acha o Jô Soares “uma pessoa muito inteligente” e que deixaria numa ilha deserta “todas as maldades do mundo.”

Sem dúvida, esse perfil produz um desprezo muito grande por quem se acha mais bacana e esperto. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, uma gerente de RH entra na sua vida. E aí, na hora de escolher entre você e um outro candidato, ela diz à outra gerente: “Achei esse rapaz muito sério; o outro tem um astral pra cima, sabe.”

Pior ainda é saber que se trata de problema insolúvel, pois que situado num belo círculo vicioso. Quem escolhe as gerentes de RH são as próprias gerentes de RH.

março 01, 2005

Triste Fim de Oswaldinho Nota Verde

Ainda na escola, Oswaldo aprendou a amar o Capitalismo, que fazia questão de escrever assim mesmo, com maiúscula. Sua namoradinha de ginásio, a Ritinha, ficou apaixonada por um professor hippie de geografia — Felipe, Lipão para os próximos —, para quem a propriedade privada era um assalto (ou roubo, não se lembrava bem). Oswaldo tomou o professor como inimigo e resolveu atacá-lo com sua melhor arma à época: “Professor, fala rápido: Marx, Eva e Adão.” Não deu muito certo, e Oswaldo resolveu estudar.

Na sétima série, já conhecia Adam Smith em detalhe, preferências gastrômicas e doenças familiares incluídas. Queria mostrar àquele barbudo com quantos argumentos se ganha uma garota. No entanto, quanto mais lia, mais se dava conta de que sua vitória sobre o professor não seria na porrada, nem no bate-boca; resolveu ficar rico e ganhar a namorada de volta. Para isso, nada melhor que ser doutor. Oswaldo estudava muito, mas só se interessava por capitalistas que se assumissem de boca cheia. Resultado: tirou zero em história e não passou no vestibular. Como era contra a universidade pública, ficou até satisfeito, mas não podia pagar uma particular. Embora fosse capitalista, Oswaldo mal tinha o da passagem. Resolveu se virar.

Primeiro tentou um empreendimento próprio. Viu que no bairro só havia uma banca de jornal e montou a sua. No início até que vendia bem; tinha um bom papo e se tornou ídolo dos aposentados das redondezas. Seus argumentos — acredita-se — foram a matéria-prima de dezenas de cartas de leitores enviadas ao jornal da cidade, daquelas em que se protesta com frases de efeito. Sua banca sempre cheia acabou atraindo outros jornaleiros e, em pouco menos de dois anos, Oswaldo faliu. Não ficou chateado; antes o contrário: viu naquilo a beleza da livre concorrência e do espírito empreendedor.

Depois da tentativa frustrada, Oswaldo ainda sonhou com uma towner, mas ficou no sonho mesmo. Acabou arrumando um emprego numa firma de serviços gerais. Não tinha carteira assinada, mas não via mal nisso. Afinal, ele vendeu sua força de trabalho como quis e quem seria o Estado para reclamar disso? Mas o Estado reclamou, e uns fiscais obrigaram a firma a empregá-lo oficialmente. Férias, décimo-terceiro, aquela coisa toda. Oswaldo entrou em depressão: estava feliz com a CLT, logo ele, que tanto gritava contra aquele absurdo. Antes que fizesse uma besteira, foi demitido.

Oswaldo não desanimou. Achou que a política seria o seu lugar e não tardou a se filiar a um partido liberal. Logo descobriu que o nome não dizia muita coisa: em seu primeiro discurso, ouviu um bocejo a cada citação de um economista de renome. Quando chegou a Schumpeter, um colega o interrompeu numa salva de palmas. Só saiu candidato porque se comprometeu a não falar difícil. “Povo gosta de emprego, não de trabalho,” disseram-lhe. Irritado com a censura freqüente, Oswaldo exigiu respeito à sua coerência, no que foi prontamente atendido: passaria a se chamar Oswaldinho Nota Verde, em alusão aos dólares que adorava elogiar. A campanha não deu certo. Ninguém parecia disposto a doar dinheiro para alguém com aquelas idéias. “Mas o que eu defendo é exatamente o seu lucro”, insistia, antes de ouvir a resposta de sempre: “Meu filho, se eu quisesse livre concorrência, não dava dinheiro pra campanha política.” Os votos dos aposentados do bairro não salvaram Oswaldo da derrota humilhante. A política o expulsou de vez.

No dia da eleição, Oswaldo ficou cabisbaixo; não pela derrota, que ele até compreendeu. Triste mesmo foi ver a Ritinha toda prosa ao lado do Lipão, num conversível mais que bacana. Arrasado, Oswaldo ainda teve tempo de pegar o ônibus, mas ninguém sabe para onde.

fevereiro 27, 2005

Contos Sensoriais (I)

Quando era pequeno, tinha muito medo de me viciar em cocaína. Achava que o vício vinha do cheiro: um perfume tão gostoso, mas tão gostoso, que, uma vez experimentado, produzia no sujeito a vontade incontrolável de senti-lo o tempo todo. Deve ter sido alguma associação com o canto da sereia, possivelmente uma mistura de trechos de conversas de adultos, mal ouvidos pelo sono, à mesa de um restaurante. Talvez sem sono, mas certamente à mesa de um restaurante, impaciente com os cafés antes da conta. Aquele medo persistiu em mim por muito tempo. Não o da cocaína, mas o do vício; não o de um vício qualquer, mas o de um perfume delicioso.

Como o associava à causa errada, custei a perceber que já estava viciado. E que nunca mais conseguiria esquecê-la.

fevereiro 25, 2005

O Millôr já fez a conta

É sempre uma questão de expectativa. Fosse Greenhalgh ou João Paulo, haveria gritaria ensurdecedora à simples menção da palavra ”aumento”. No que compete à opinião pública, indisposição generalizada, constrangimento e... gaveta. Como se trata de Severino, a quem o aumento nunca pareceu vergonhoso, a perplexidade não dura mais que duas semanas. Até lá, tudo estaria certo — se a estratégia fosse a do silêncio.

Mas Severino não se agüentou e colocou os argumentos na mesa:

— É evidente que a sociedade quer. Ela está aceitando. Não tem sido é bem esclarecido. Não existe essa coisa de posição contra. O que a sociedade não aceita é desonestidade, é roubalheira. E se existir isso dentro da Câmara, vou acabar.

A sociedade é abstrata; não vai ser ouvida pelos jornais ou pelo Congresso. Mesmo que o fosse, não serviria, pois não sabe o que fala. Nem de seus representantes se pode esperar grande coisa:

— Isso é um problema desses partidos que estão fazendo apenas demagogia. Eles estão doidos por esse aumento. Não vai perder (em plenário) que eu tenho certeza, porque demagogos têm poucos aqui na Câmara.

Subestimar o outro não tem sido boa estratégia: as palavras ferem mais do que o aumento. Se voltar a ficar quieto, tendo razão (ignorância e demagogia), é capaz de chegar aonde quer; não seria surpresa para ninguém. Articulistas em jornais só se fazem ouvir por quem os lê. Não parece ser o caso.

Como diz o Millôr, dividindo toda nossa indignação por todos os problemas do país, o percentual que sobra para cada um é muito pequeno.

fevereiro 23, 2005

Da janela

Era uma paisagem tão bonita, mas tão bonita, que parecia uma foto.

fevereiro 21, 2005

Pax Cannabis

O problema não é ter fumado; o problema é não fumar mais.

fevereiro 19, 2005

Homo Economicus Ethicus, as if

Os escândalos financeiros recentes no mundo corporativo americano (Enrom, WorldCom, Tyco) deram espaço a uma pergunta “despropositada”: e a ética desses caras, onde foi parar? Quem a faz não é o barbudinho da esquina, mas o ex-professor da LSE Sumantra Ghoshal, em artigo póstumo. Para ele, a raiz comum aos problemas está nos cursos de MBA, requisito de dez entre dez engravatados das grandes companhias.

Segundo Ghoshal, os MBAs se arrogam um status acadêmico discutível. Estudos de caso e modelos matemáticos não compõem base científica — afirma —, sobretudo porque dispensam a reflexão metodológica e resumem o mundo dos negócios a duas verdades simplistas: a soberania do homo economicus (utilitarista, racional, competitivo) e o objetivo único de maximização dos ganhos dos acionistas das grandes empresas.

Com o diploma na mão, a rapaziada recrutada pelas empresas se sentiria livre, do ponto de vista moral. E essa liberdade — mal lida em cursos de um ano ou dois — estaria se voltando contra as próprias corporações e os próprios businessmen. Daí os escândalos.

A Economist, é claro, dá seu recado. Além de excessiva, a crítica de Ghoshal desconsidera três pontos centrais: 1) nos escândalos citados, os executivos corruptos, em boa parte, não fizeram MBA; 2) a crença no homo economicus tem decaído em toda parte, até mesmo na Universidade de Chicago; 3) não se pode esperar aprofundamento científico de um tipo de curso cuja essência está na prática dos negócios. Para a revista, o problema é outro: corporações que valorizam esse diploma em demasia, como se a capacidade de liderança pudesse vir de conhecimentos despidos de maturidade e sabedoria — para os quais não há curso possível.

Ainda assim, adesões de pesos-pesados têm feito a onda do momento na discussão acadêmica no eixo EUA/Inglaterra. Não chegam a ser tsunamis, mas já limparam quintais: Harvard e Stanford aceitam parte das críticas e passam a incluir Ética como disciplina de seus MBAs. “Escolha” e “intenção” deixariam os dicionários para entrar na análise econômica dos administradores recém-formados.

No Brasil, a expansão MBAs só é comparável à de cursos universitários; o mesmo se pode dizer de sua qualidade, questionável na maior parte dos casos. Mas a discussão não deve pegar. Antes e fora da moda desse diploma, a corrupção nunca foi o ponto fora da curva; na maior parte das vezes, é a própria curva. Por aqui, reserva-se à Ética o bueiro da discussão dita “ideológica” — à direita e à esquerda —, como se isso a tornasse indigna.

fevereiro 18, 2005

Da idiotice humana

Há, para quem não sabe, uma escala da idiotice humana. Cada um de nós se comunica com pessoas que se situem até dois graus acima ou abaixo do próprio grau. Para os que estão abaixo, rende-se admiração, sempre disfarçada de respeito, para não pegar mal; para os que estão um pouco acima, fazem-se concessões — assunto para um post do Márcio, a ver. Se a diferença for maior, nenhuma comunicação é razoável; predomina o ruído.

Por isso, o constrangimento das reuniões na casa daquele amigo sociável. Encontros com mais de oito e menos de vinte pessoas não funcionam. Forçosamente, haverá um intervalo de idiotice grande demais. Acaba com o idiota 2 sendo chamado de convencido, só porque teve a sorte e o ânimo de ler um livro que ninguém ali conhece (ou porque não conhece uma tal de Lia Luft); ou com o idiota 7 sendo alvo de gargalhadas incontidas, sem percebê-las, rindo também.

O sistema é complexo e exige detalhamento para o caso de um leitor de idiotice muito alta. Funciona mais ou menos assim: Michael Moore, por exemplo, é um idiota 7. Por isso, os idiotas 5 e 6 o aturam, fazendo concessões: “Ah, mas você não pode negar que o filme é bem feito!”; os idiotas 3 e 4 escrevem textos para criticá-lo, mostrando todos os erros que ele comete em cada cena; os idiotas 1 e 2 nem se dão o trabalho de comentar o filme e ficam constrangidos com quem comenta; e o idiota 0 não o conhece. Acima de 7, os idiotas 8 e 9 acham Michael Moore genial: “Quero ver o Bush se eleger depois desse filme!”; o idiota 10... Bem, o idiota 10 foge à lógica dessa escala: ele não entende quem vai ao cinema para ver documentário. Mas nós o perdoamos, porque ele é o próprio gente-boa.

fevereiro 16, 2005

Que se dne!

O maior benefício das tecnologias é poder humilhar os outros; quanto mais avançado o celular, maior a humilhação. Dá gosto; e aquele sorriso contido de desfaçatez e superioriedade no canto da boca não me deixa mentir. Alguns dizem não se contaminar e repetem que carro, para eles, só precisa andar. Esses, os maiores invejosos.

Tudo bem. Entre humanos, tudo se resolve: o cara do carro esculhambado ajeita os óculos escuros quando passa perto do ponto de ônibus. Quando vejo uma cena dessas, chego a gostar; penso que o ser humano ainda tem salvação. Humilhado por fetiches, contra-ataco logo: “Tomara que quebre!”

Mas uma experiência recente me fez pensar que isso tem um limite.

Quem o Google pensa que é?! Volta e meia, diante de algo mal digitado, aquela mensagem “Você quis dizer fotos da Luma?” Imaginem! O sistema dizendo que eu errei e, pior, dizendo-o em tom superior, já sugerindo uma correção. Tenho vontade de responder: “Não, eu quis dizer ftos da Luma mesmo. Você é que não entendeu.” Mas o Google não me dá essa opção. Ah, que saudade das mensagens mecanizadas de erro que eu sabia não serem para mim...

(Há quem discorde.)

fevereiro 13, 2005

Furos de reportagem

O Rio fica a 45 minutos de São Paulo, se você desembolsar 300 pratas. Com um por cento disso — o preço de um jornal de domingo —, a distância é muito maior.

Leia-se a Folha de S. Paulo do dia 6 de fevereiro, domingo de Carnaval; aliás, bastam as páginas iniciais. Na cobertura da festa, a 1ª página traz duas chamadas para artigos. No primeiro, Ferreira Gullar demonstra sua reconhecida perspicácia com um insight brilhante: segundo o poeta, em pouco tempo, as escolas de samba do Rio só terão brancos, seja desfilando, seja na platéia. O leitor fica estupefato: que sacação! Genial, genial, diria o Roberto do post aí de baixo. Como ninguém pensou nisso antes?!

Ainda sem conseguir vencer o largo sorriso, o leitor passa os olhos pela outra chamada. Desta vez, Danuza Leão e uma pergunta inquietante: por que o Cordão do Bola Preta é o bloco de rua mais longevo do Rio? A resposta, precisa e inimaginável, não tarda: trata-se da espontaneidade do bloco, do gosto pelo samba de verdade, do apreço pelo Carnaval de verdade, sem marketing, uma coisa assim de raiz. Caramba — suspira o leitor —, é mesmo! Que coisa!, exclama novamente, que esse leitor é dado a exclamações.

Com o gosto da satisfação pelo dinheiro bem gasto, o leitor se arrisca à página 2. Mas não se adianta. Temendo o que lhe reservam as pensatas, vira a página devagar. Para manter a coerência da carioquice, vai logo ao texto do Cony. Sob o título “Tombamento inútil”, o escritor fala sobre o Cristo Redentor, propondo interpretações inovadoras. Os braços abertos representam não apenas a benção, mas a surpresa com as belezas da cidade e a bronca contra os problemas. Quanta simbologia em uma única imagem — admira-se o leitor. Esse Cony, hein! Quando alguém imaginaria enxergar no Cristo tudo isso?

Antes de prosseguir, o leitor suspende o olhar, balança a cabeça sob a imaginação do privilégio que está tendo. Pensa em continuar, mas teme a decepção. Prefere ficar com as impressões que lhe foram presenteadas por três nomes da inteligência nacional e suspira fundo antes de beber mais um golé de café.

fevereiro 09, 2005

E a Beija-Flor, hein?

Desfile de Carnaval é como eleição: pode-se não acompanhar as escolas ou reclamar que é sempre a mesma coisa, mas a apuração do resultado ninguém perde.

fevereiro 06, 2005

Roberto ri por último

Roberto tem gestos largos e gargalhada fácil. Embora se ache dono da verdade, é um pouco ignorante e bem burro — mas tem gestos largos e gargalhada fácil.

Roberto gosta de definições, tanto mais radicais quanto mais ignorantes. A cada encontro com os amigos, uma nova — ou a repetição das velhas. Adora fazer comparações entre cineastas bons e cineastas brasileiros: “Cacá Diegues é o Fellini brasileiro,” repete sempre. Também costuma dizer que Manuel de Barros é um poeta genial. “Gente, ele é o Guimarães Rosa da poesia!” Quando fala de política, Roberto não deixa por menos: “O que o Brasil precisa é de um líder, o resto a gente resolve.” Para ele, “a única comida que presta é a italiana, e de cantina, que vem bem servida, porque, vocês sabem, comida é ingrediente, comida é ingrediente...” Os braços se abrem na frase, e depois de cada frase, a gargalhada fácil. Roberto ri fácil, e todos riem também.

Os amigos de Roberto gostam de falar mal dele em sua ausência; interpretam seu comportamento, relembram histórias, repetem sua ignorância. Não é difícil. Alguns já tinham tentado interceptá-lo ao vivo, durante a conversa. “Mas, Roberto, a idéia do filme é incomodar mesmo e fazer pensar.” Péssima estratégia, logo respondida com uma gargalhada franquíssima, seguida de um desdém preciso: “E você vai ao cinema para ficar incomodado?” E repetia a gargalhada, contagiando quem estivesse por perto.

Os amigos de velhos tempos já sabem disso e preferem calar, concordando com gentileza e se cutucando sob a mesa. Ali colhem material para o próximo encontro. Seu assunto preferido é Roberto. Alguns se perguntavam o que leva uma fraude como ele a ter uma namorada tão interessante. Outros trincam os dentes ao falar sobre seu sucesso como advogado. “Como é possível, o cara não consegue sustentar uma opinião?!” Há ainda os que duvidam de que ele seja tão idiota e imaginam estar diante de uma espécie de pegadinha... Mas todos concordam que, mais dia, menos dia, a fraude será descoberta. E riem risadas irregulares, cruzando os braços em gestos obtusos.

Roberto nem desconfia do que os amigos dizem sobre ele. Sempre os abraça largamente, prometendo aquela visita adiada, com a ressalva de sempre: “Mas vê se lê o Emir Sader, que o cara é gênio, hein!” E dá sua gargalhada aberta. Roberto não sabe, mas essa gargalhada é sua suprema ironia.